Entrevista a Diogo Nogueira Leite – os dados na Saúde

Hoje temos o prazer de entrevistar Diogo Nogueira Leite, um especialista em Ciência de Dados em Saúde e defensor da saúde mental. Diogo está atualmente a realizar um doutoramento em Ciência de Dados em Saúde na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, com uma tese sobre as atitudes de profissionais e indivíduos em relação às aplicações digitais de saúde mental.

Diogo é um apaixonado pela saúde mental e tem estado ativamente envolvido em várias iniciativas relacionadas com o tema. Participou na primeira edição do Parlamento da Saúde em Portugal, integrando a Comissão de Saúde Mental, onde contribuiu para a produção de um documento de política com foco na promoção da saúde mental comunitária.

Agora, vamos prosseguir com a entrevista a Diogo Nogueira Leite, explorando o seu conhecimento e experiência no campo da saúde mental e digital.

Como surgiu o seu interesse pela saúde mental e pela utilização de tecnologia na área?

O meu interesse pela saúde mental e pela utilização da tecnologia na sua promoção floresceram praticamente na mesma altura: em maio de 2015.

Após várias consultas com o meu psiquiatra – uma pessoa que me acompanhou em vários momentos da minha vida e a quem estarei para sempre grato – concluímos que o conjunto de sintomas depressivos e ansiosos que tinha (estados de apatia e de angústia profundos e duradouros, insónias que duravam semanas e que se iniciavam com ataques de taquicardia, extrema irritabilidade e sensibilidade, entre outros) estava a impactar profundamente a minha capacidade funcional, para não falar da minha qualidade de vida. Era necessário mudar algo, mas precisava de estabilizar o meu estado emocional primeiro. E, para isso, precisava de repousar para poder iniciar a minha recuperação.

Eu sempre fui fascinado pela saúde e pela tecnologia em doses iguais ao longo do tempo. O que mudou, porém, foi que desta vez eu era o visado, em vez de um curioso observador, da situação clínica em questão. Quando não nos toca a nós, tendemos a ser relativamente benevolentes; quando a situação se inverte, porém, somos testados. No meu caso, essa experiência tornou-se particularmente aterradora quando tive de pedir o meu certificado de incapacidade (a chamada “baixa”) para entregar no meu emprego. Fui para uma fila de centro de saúde às 7h da manhã, acompanhado de pessoas dos mais variados estratos sociais e idades, e a pessoa que me tratou mais humanamente… foi o segurança. Lembro-me de olhar em volta e de pensar que tudo isto era desnecessário – se já estava vulnerável, porquê expor-me daquela forma a pessoas estranhas ao meu processo? Porque é que o sistema me obrigava a passar por isto? Porque é que tanto a administrativa como a médica que me atenderam (eu não tinha, à data, médico de família, nem sabia quão importante isso era!) não demonstravam maior humanidade? Tudo isto era revoltante, perturbador, e, para alguém que já tem postos uns “óculos de negatividade”, profundamente esmagador.

Por isso, prometi a mim mesmo que, quando pudesse, faria algo para que, no futuro, as pessoas não tivessem de passar por esta situação de forma tão desacompanhada, tão descoordenada, tão pouco humana. Porque, realmente, poderá acontecer-nos a todos. As estatísticas apontam que, sensivelmente, a 51% de nós.

Ora, não há sistema de saúde que aguente tratar 5 milhões de pessoas em simultâneo. Ao mesmo tempo, estávamos no início da era do smartphone, e as primeiras apps com impacto mundial estavam a surgir. E lembro-me de, num desses momentos aterrorizadores de espera, ter pensado “porque não usar o telemóvel para ajudar nestas situações, nem que fosse nas triagens? Já podia aliviar bastante todo o processo e torná-lo mais fácil de gerir para a própria pessoa, sobretudo considerando o seu estado fragilizado…”

Oito anos depois, cá estamos – com uma tese pronta a defender sobre as atitudes e perceções dos clínicos e dos indivíduos sobre aplicações móveis de saúde mental! Ela é o meu contributo para ajudar a promover uma melhor saúde mental em Portugal, mas, acima de tudo, é o cumprimento de uma promessa feita a mim próprio numa sala de espera na UCSP dos Olivais, em Lisboa.

Pode falar-nos um pouco sobre a sua tese de doutoramento e o que a motiva nesta área de estudo?

Como disse anteriormente, esta tese de doutoramento é, para mim, mais do que um objetivo intelectual ou profissional: tratou-se de um desafio que encarei de forma muito pessoal como uma forma de alavancar o triunvirato entre digital, economia e saúde para atacar de forma frontal o problema da doença mental, sobretudo nas suas formas mais ligeiras (depressão, ansiedade e burnout).

Essencialmente, a minha tese parte de uma premissa de economista: é preciso que a procura e a oferta se encontrem para determinar um equilíbrio de mercado. Neste caso, todos somos potenciais procuradores de cuidados de saúde mental, e quem oferece estes cuidados são os profissionais de saúde mental, definidos como psicólogos e psiquiatras (sem demérito para outras profissões com papéis relevantes na gestão destes casos). Mais ainda, sabemos que tanto a procura como a oferta são altamente influenciadas pelas expetativas – ou seja, as atitudes e perceções – de ambos os lados da equação.

Ao mesmo tempo, é claro que nem uma ferramenta de saúde ganha adesão se os profissionais não a aceitarem, nem nenhuma ferramenta tem suporte de mercado se os seus potenciais utilizadores não a quiserem usar. Por isso, antes de começarmos a financiar – como a Alemanha já o faz – tecnologias digitais como as apps para a gestão de condições de saúde, é preciso entender o que é que os profissionais e a população relevante pensam das mesmas.

Esse foi o meu objetivo na elaboração do protocolo que publiquei e dos dois estudos – respetivamente, para a oferta e para a procura de cuidados de saúde mental – que elaborei em conjunto com os meus colegas. Fomos motivados quer pela crença a priori que estes mecanismos podem ajudar muito as pessoas e os profissionais nas suas respetivas gestões, como pela necessidade de arranjar mecanismos que, apoiados por estas pessoas, pudessem ajudar a distinguir o trigo do joio.

Este último aspeto é crucial: há muitas apps classificadas como sendo de saúde mental que pouca ou nenhuma evidência clínica têm que as suporte. Já para não referir aspetos técnicos e práticas éticas (ou não) de negócio.

Como pode a saúde mental comunitária ser promovida através do uso de tecnologia?

Existem várias possibilidades para promover a saúde mental comunitária através da tecnologia. Focar-me-ei em duas: na otimização dos recursos humanos disponíveis e na teleconsulta.

A primeira diz respeito a uma inevitabilidade – teremos sempre poucas pessoas para o trabalho que precisa de ser feito. Portanto, temos de fazer o melhor uso possível dessas pessoas. Isto implica devotar mais tempo destes profissionais aos casos mais complexos e solucionar os casos mais simples através de mecanismos mais ágeis. A tecnologia pode ajudar-nos a mapear esses casos e a fazer esta segmentação, aumentando os resultados que temos. Da mesma forma, muitos médicos de família sabem como gerir um quadro de ansiedade ou de depressão numa fase mais ligeira; porém, não têm algo que os oriente e que lhes permita seguir de forma simples e eficaz os seus doentes. Se desenvolvermos um ‘gestor do utente’ capaz de coligir toda a informação relevante para o acompanhamento destas condições e que sugira potenciais vias de diagnóstico ou tratamento, conseguiremos facilitar o trabalho destes médicos de família que são, muitas vezes, o elo privilegiado com os utentes.

Já no que diz respeito à teleconsulta, a pandemia veio demonstrar que existe uma brutal capacidade de ter acompanhamento personalizado ao mesmo tempo que se evita tempos de deslocações, possibilidades de nos cruzarmos com conhecidos, entre outros fatores que nos podem dissuadir de procurar esse atendimento. E, estranhamente ou não, as teleconsultas têm persistido nos casos de saúde mental, enquanto têm decaído noutras especialidades – portanto, à partida, a experiência foi e é boa. Dado que a taxa de penetração dos smartphones é já elevada em Portugal e que temos uma câmara de vídeo e um microfone no bolso de muitos portugueses, assim como uma boa estrutura de conetividade que nos permite ter boas ligações de Internet, porque não usar esse meio para potenciar a nossa capacidade de resposta e ter auxílio clínico em tempo real, pelo menos nos casos de maior urgência ou em que a própria pessoa consegue mais facilmente gerir a sua doença, como nos casos ligeiros?

Na sua opinião, quais são as maiores lacunas ou áreas que necessitam de maior atenção no campo da saúde mental em Portugal?

A minha prioridade – embora de forma suspeita, claro está – seria mais e melhores dados. Temos hoje formas seguras e que preservam a confidencialidade e privacidade das pessoas de colher e tratar dados (o meu coautor José Miguel Diniz tem um conhecimento bastante vasto sobre essa área). Isto é vital porque ter uma imagem clara do problema é fundamental; só sabendo onde, como e quando se manifestam estas situações poderemos abordá-las de forma mais focada.

Quanto a diagnósticos, penso que muito, senão tudo, está feito. A grande dificuldade tem sido a execução das propostas de ação. Precisamos de passar à ação e de o fazer de forma corajosa e participada. Porque digo isto?

Implementar soluções em saúde é mais difícil do que parece à primeira vista. Há uma multitude de pontos de vista muito informados que precisam de ser geridos e considerados, e um elevado sentido de classe que já é raro ver noutros setores da nossa sociedade. Há um intenso escrutínio (e bem) pelos órgãos de comunicação social. Mexe com o que de mais íntimo, importante e humano há em nós. E, se é assim com todas as doenças, que dizer das doenças mentais…

Temos dois aliados nesta luta que podemos ativar. A tecnologia é, sem dúvida, um deles, tanto quanto não seja enquanto catalisador. Mas o outro, e certamente o fator diferenciador, será (não é sempre?) as pessoas. Precisamos mesmo de as ouvir mais e de permitir uma participação mais alargada. Há pessoas que desenvolvem projetos absolutamente fantásticos que raramente têm voz. Verdadeiros lutadores e lutadoras por este Portugal fora que fazem muito com muito pouco. Precisamos de saber escutar essas pessoas, de unir esforços com elas e de ser capazes de dividir sucessos e responsabilidades. Não será nem o Diogo, nem o Sérgio, nem qualquer um dos muitos (e muito talentosos) colegas com quem já trabalhei que, individualmente conseguirá responder isto. Nem mesmo uma só equipa. É um desafio societal e, como tal, exige que a sociedade como um todo seja, também, parte da resposta.

Que conselhos daria a alguém que procura utilizar tecnologia para melhorar a sua saúde mental?

Primeiro que tudo, encontra alguém com quem falar. Pode ser qualquer um; o único requisito é que tenha bom senso e disponibilidade para ouvir sem preconceitos. Se não te sentires à vontade para discutir este tema com ninguém, a Linha SNS24 tem uma linha de aconselhamento psicológico gratuita que pode ajudar-te. Esta primeira conversa deve servir para expressares como te sentes e para, caso aches que necessitas, pedires ajuda. Uma chamada telefónica é tecnologia – mesmo que já a demos por garantida.

Se pudesse aconselhar uma app – e vou fazê-lo apenas porque já fiz um escrutínio bastante cuidado deste mercado – sugeria a 29kFJN. Está disponível em qualquer app store e todos os seus conteúdos são gratuitos. Não tem o potencial de terapia, mas pode ajudar-te a gerir alguns dos teus sintomas mais urgentes e a ter a capacidade para pedires ajuda de forma mais segura. Caso apenas queiras melhorar o teu estado de saúde mental no sentido da promoção, excelente também! Tem muitas ferramentas ao dispor que, de acordo com a evidência clínica existente, têm um impacto positivo na saúde mental dos seus utilizadores.

Finalmente, garante que todas as ferramentas que usares obedecem a normas de confidencialidade e privacidade que respeitam os direitos humanos na era digital, e que a União Europeia protege. Há muitas (demasiadas!) coisas que instalamos nos nossos telemóveis/tablets/computadores sem fazer a devida filtragem. Dado tratar-se de algo que nos é tão íntimo, é bom garantirmos que estamos a recorrer a plataformas que fazem o esforço para se reger por esses standards. E, se tiveres dúvidas, não instales a app; neste caso, como na Medicina em geral, a primeira coisa a fazer é não prejudicar! 

Agradecemos a Diogo Nogueira Leite por partilhar os seus conhecimentos e experiências connosco. Ficamos na expectativa de continuar a ouvir falar cada vez mais sobre a saúde mental e as aplicações digitais neste campo em constante evolução.

 

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