Finanças comportamentais: Introdução

Atualmente, no mundo das finanças, domina o paradigma racional. No entanto, futuramente, este domínio poderá não se manter. Com este artigo, procuro introduzir uma vertente mais realista do estudo do comportamento do ser humano e consequente funcionamento dos mercados financeiros, a área das finanças comportamentais. 

De modo a abordar este tema de forma completa, crio uma série de artigos dividida em várias partes onde irei explorar vários temas dentro da área, tais como: os enviesamentos psicológicos e emocionais do ser humano; como estes afetam as suas decisões financeiras e de que forma os podemos ultrapassar; teorias das finanças comportamentais que têm uma aplicação na realidade; os comportamentos dos investidores; a eficiência dos mercados; e, por fim, críticas a esta área.

Desde meados do século passado, as finanças tradicionais, ou racionais, têm vindo a desenvolver modelos teóricos, com o objetivo de explicarem como o ser humano se deve comportar e, assim, como funcionam os mercados financeiros.

E agora pergunta-se: “como se deve comportar? Não deveria ser como se comporta na realidade?”. Exatamente, é uma ótima pergunta, com a qual os apoiantes das finanças tradicionais não se sentem confortáveis. 

As finanças tradicionais e o ser humano racional

De facto, as finanças tradicionais assumem como o ser humano se deve comportar ao invés de estudarem como é que o humano realmente se comporta e toma as suas decisões financeiras. Este é o principal problema desta área, que assenta em vários pressupostos irrealistas, entre os quais: 

1- O ser humano é completamente racional e, portanto, capaz de processar toda a informação disponível no mercado e fazê-lo de forma correta, isto é, as suas decisões serão sempre as mais acertadas; 

2- A informação que o ser humano recebe do mercado é “perfeita”; 

3- O ser humano é completamente egocêntrico, ou seja, apenas se preocupa com os seus assuntos e age em função de si mesmo. 

É importante referir também que as expectativas dos investidores em relação ao mercado são homogéneas, ou seja, no fundo, todos os seres humanos pensam da mesma maneira.

Desta forma, existindo apenas agentes económicos racionais a atuarem nos mercados financeiros, é plausível assumir que estes são eficientes, isto é, o preço de mercado de um ativo será sempre a melhor estimativa para o seu valor intrínseco. A principal justificação para assumir um mundo simples mas irrealista é a de que, desta maneira, é possível construir modelos teóricos mais compreensíveis, passíveis de serem demonstrados de uma forma matemática.

O ser humano racional não existe

Ora, já neste ponto inicial do artigo, o leitor é capaz de se sentir um pouco surpreendido. É claro que o ser humano não toma sempre as decisões mais acertadas, sendo que somos influenciados pelas nossas emoções e pelo ambiente que nos rodeia, que nos levam a tomar ações impulsivas. 

É também claro que a informação que recebemos do mercado é ambígua e fazemos decisões num ambiente de incerteza. Uma prova disso são os rumores dos mercados financeiros que deixam os investidores divididos quanto à posição que devem tomar. Torna-se ainda mais claro que o ser humano não é inteiramente egocêntrico, preocupando-se com familiares, amigos, ou mesmo desconhecidos, o que é visível com todas as ações de voluntariedade e caridade que existem pelo mundo. 

Por último, e penso que o leitor concorda comigo, não pensamos todos o mesmo. Se isso fosse verdade, como ocorreriam transações no mercado? Se alguém tem as expectativas de uma má performance futura de uma certa ação, então irá vender essa ação. Mas, para o fazer, alguém terá de comprar essa ação e, para estar disposto a fazê-lo, tem de ter expectativas de uma boa performance futura. Logo, para ocorrer uma transação são necessárias expectativas heterogéneas. Portanto, os pressupostos não são válidos.

O jogo do ultimato

Com a participação de duas pessoas aleatórias, A e B, o jogo do ultimato foi desenvolvido com o intuito de provar que o terceiro pressuposto do Homem racional está errado.

Este jogo consiste na partilha de um certo montante de dinheiro (vamos imaginar 10 euros), ou seja, são dados 10 euros ao primeiro participante, e este terá de decidir quanto dinheiro, desses 10 euros, quer entregar ao segundo participante. No entanto, não acaba por aqui. O segundo participante terá de decidir se aceita ou rejeita a oferta e, se rejeitar, nenhum dos participantes receberá qualquer dinheiro.

De acordo com as finanças tradicionais, o primeiro participante deveria dar ao segundo participante apenas 1 euro, e este último deve aceitar a oferta, já que receber 1 euro é melhor do que não receber nada. 

No entanto, o que acontece na realidade é bastante diferente. Tipicamente, as ofertas dos primeiros participantes são de 4 ou 5 euros e os segundos participantes costumam rejeitar ofertas de 1 ou 2 euros. Deste modo, verificou-se que as pessoas preferem não ganhar nada do que aceitar uma distribuição injusta da riqueza, mesmo que mais dinheiro esteja em jogo. 

As finanças comportamentais

Foi neste contexto que vários especialistas se foram apercebendo que os modelos racionais não apresentam uma solução para os problemas do mundo real e que, por isso, focaram-se em analisar o comportamento do ser humano e, posteriormente, estudar o funcionamento dos mercados financeiros. Assim, mais recentemente, surgiram as finanças comportamentais.

Neste enquadramento, a área das finanças comportamentais ocupa-se do estudo de como, sistematicamente, as decisões e comportamentos dos agentes económicos se desviam do que é expectável, de acordo com as finanças tradicionais. Para além disso, estuda as consequências da presença destes agentes económicos, que não são completamente racionais, para o funcionamento dos mercados financeiros.

Para isso, recorre aos conhecimentos da área da psicologia que, ao longo dos anos, foram identificando vários enviesamentos psicológicos e emocionais do ser humano. Com estes estudos, é possível descrever o ser humano de uma forma muito mais realista, isto é, as pessoas não são completamente racionais, tendo limitações a nível do seu conhecimento e habilidades cognitivas de memória, cálculo e processamento de informação, mas que também não cometem erros óbvios, e cujas decisões e comportamentos são influenciados pelas suas emoções, experiências de vida e pelo ambiente ao seu redor.

Os tipos de investidores no mercado

Portanto, segundo as finanças comportamentais, coexistem dois tipos de investidores nos mercados financeiros: os investidores com racionalidade limitada e os investidores racionais (descritos como os profissionais experientes na área financeira, tais como os gestores de fundos mútuos). 

O propósito destes últimos é tentar corrigir os erros cometidos pelos investidores com racionalidade limitada nas suas decisões de investimento que, em última instância, afetam os mercados financeiros. No entanto, existem vários fatores que podem limitar a sua capacidade de correção das ineficiências do mercado e, portanto, o peso pode cair sobre as decisões dos investidores com racionalidade limitada.

É desta maneira que a área das finanças comportamentais desafia a eficiência dos mercados financeiros. Num dos próximos artigos, este tópico será mais desenvolvido.

Os enviesamentos do ser humano

No próximo artigo sobre finanças comportamentais, irei cobrir todos os enviesamentos psicológicos e emocionais que levam o ser humano a tomar decisões erradas, incluindo decisões sobre a gestão dos seus investimentos. Por agora, deixo apenas uma breve explicação sobre como surgem estes enviesamentos.

A psicologia demonstra-nos que, para tomarmos as decisões do dia-a-dia, utilizamos dois sistemas: o sistema 1 e o sistema 2. No primeiro sistema, utilizamos a nossa intuição, que é desenvolvida ao longo da nossa vida, através das experiências pelas quais passamos. Assim, este sistema permite-nos tomar decisões rápidas, automáticas e inconscientes. Este sistema é extremamente associativo e, por isso, é a razão pela qual associamos um rapaz alto e atlético a um jogador de basquetebol. Já o segundo sistema é muito mais deliberativo, lógico e lento e utilizamo-lo para tarefas mais complexas, como, por exemplo, resolver um problema matemático.

Para testar a sua intuição, desafio-lhe a responder, rapidamente, ao seguinte problema: um taco de beisebol e uma bola custam 1.10 euros no total. O taco custa mais 1 euro do que a bola. Quanto custa a bola? Pense numa resposta rápida. Agora pense no problema mais cuidadosamente. Leve o seu tempo. 

Provavelmente, na sua primeira resposta (onde utilizou a sua intuição) chegou ao resultado de que a bola custa 10 cêntimos. Essa é a solução que nos dá o nosso sistema rápido e automático. Porém, na sua segunda resposta, ao ter analisado o problema com mais atenção e dado mais tempo ao seu cérebro para pensar, deve ter concluído que a resposta correta é que a bola custa 5 cêntimos.

Não pretendo que o leitor me interprete de forma errada, a maioria das decisões que tomamos são baseadas na nossa intuição, e muitas vezes elas estão corretas. No entanto, por vezes, usar a nossa intuição não é o melhor caminho e pode levar a graves erros.

Estes erros são causados pelos enviesamentos psicológicos e emocionais dos quais, sem exceção, todos os seres humanos sofrem, e que são resultado das naturais limitações cognitivas das pessoas (por exemplo, em termos de cálculo e memória) e da influência que exercem as emoções. Portanto, são estes enviesamentos que levam os seres humanos a afastarem-se dos comportamentos  que são previstos pelas finanças racionais.

Desta forma, por mais educação, formação, ou experiência que tenha, ou que até seja um especialista na área, sofrerá sempre destes enviesamentos. Estudos empíricos demonstram que é impossível que as pessoas aprendam a ultrapassá-los, seja com o passar do tempo, com a experiência, ou até com fortes incentivos. 

Um pequeno exemplo

No próximo artigo sobre finanças comportamentais, retratarei os enviesamentos de uma forma mais ligada ao mundo das finanças. No entanto, deixo um pequeno teaser que demonstra, de uma forma geral, como estes nos afastam do que é previsto do ponto de vista de um comportamento racional.

Repare nas quatro cartas que se encontram em seguida. Cada uma destas cartas tem uma letra num dos lados da carta, enquanto que no outro tem um número. Se eu lhe afirmar que, se num dos lados da carta aparece uma vogal, então no outro lado terá um número par, qual, ou quais, carta(s) necessita de virar para verificar se esta minha afirmação é verdadeira ou falsa?

Fonte: Peter Cathcart Watson (1966)

Tipicamente, embora equivocadamente, as pessoas escolhem virar a primeira carta ou as duas primeiras cartas. A solução correta é virar a primeira carta (para confirmar que do outro lado tem um número par) e virar a última carta (para confirmar que do outro lado não tem uma vogal).

Note que a sua tendência é de confirmar a afirmação, ao invés de contradizê-la (e é para isso que serve virar a última carta). Isto acontece porque o ser humano sofre do enviesamento de confirmação, isto é, a tendência para procurar, identificar, interpretar, favorecer e apenas recordar informação que irá de encontro, confirma e apoia uma certa hipótese ou crença inicial.

Conclusão

Poderíamos aceitar a existência do Homem racional e todos os fortes pressupostos que inferem os modelos teóricos racionais se, de facto, estes modelos fossem capazes de prever o que acontece na realidade, nos mercados financeiros.

No entanto, isto não é o que acontece. Os modelos racionais falham constantemente nas suas previsões. Um exemplo disso é o Capital Asset Pricing Model, cujo objetivo de prever os retornos dos ativos baseado no seu risco (utilizando, como proxy, o beta), não é cumprido.

Ao mesmo tempo, nos mercados financeiros, observamos, frequentemente, várias ineficiências. Desde a excessiva volatilidade dos preços até à criação de bolhas especulativas, o mercado está repleto de provas contra a sua própria eficiência. 

Adicionalmente, os investidores diversificam insuficientemente o seu portfólio, seguem estratégias baseadas em tendências de preços, transacionam em excesso, seguem opiniões de analistas financeiros, ou mesmo de outras pessoas não especializadas na área, etc. Estes são exemplos de como os investidores se comportam de uma maneira completamente diferente do que é esperado do Homem racional.

Como Meir Statman afirmou: “As pessoas são ‘racionais’ nas finanças tradicionais; elas são ‘normais’ nas finanças comportamentais.”

No próximo artigo sobre finanças comportamentais, vamos então focar-nos nos enviesamentos psicológicos e emocionais do ser humano que afetam as suas decisões financeiras.

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